O projecto “Ressonância II”, em exposição na UNESP, surge como corolário de um conjunto de obras que Virgínia Fróis tem vindo a desenvolver ao longo dos últimos anos e que apresentam em comum a escolha do material cerâmico e a forma anelar. Nesse conjunto, incluem-se obras como “Anel” (2009-2011), “Coroa” (2010-12) e “Urnas” (2012) que fazem eco dessa forma circular. O anel está associado à ideia de vínculo. Quem o usa compromete-se a uma determinada ligação e, paradoxalmente, encontra-se subordinado a ela, mesmo que a relação de subordinação seja livremente consentida. Assim, as obras/instalações da artista põem em jogo um binómio de forças que versam a quebra da indissociabilidade e a reconstrução. Através delas, a artista procura materializar as ideias de perda e simultaneamente de religare, voltar a unir e pôr em contacto. Ora suspensas, no caso de “Urnas” e “Coroa”, ora assumindo o seu peso contra o chão, no caso de “Anel”, as obras evocam uma relação com o «ausente» convocando o espectador a habitá-las, mas simultaneamente a evadir-se delas para um universo íntimo.
A peça agora exibida é constituída por um conjunto de cabeças suspensas que formam um circulo à altura do olhar do espectador, permitindo uma relação directa entre este e os rostos com que se depara.Estes, como que solicitam uma interlocução ainda que a mesma se exerça sem recurso à linguagem verbal. Aquelas cabeças apresentam-se estranhamente fechadas, sem orifícios abertos na espessa massa de cerâmica. Porém, do seu interior propaga-se um murmúrio oriundo de sete vozes femininas e uma masculina, fazendo eco sobre o espectador e apelando-lhe a um processo de introspecção. Invadido pelo murmúrio vindo da obra ou pelo silêncio que lhe subjaz, o espectador converte-se numa câmara de ressonância, podendo mergulhar nas suas memórias mais longínquas e ancestrais. Por isso, estes rostos assumem-se como vasos e urnas que selam, mas onde, como de um ovo, também se renasce. Assim, através da presença escultórica suscita-se um processo de diálogo silencioso que dispensa qualquer palavra. O que faz com que haja reciprocidade de comunicação entre a obra e o espectador? O desejo e a necessidade de partilha de cada ser humano, algo que não pode ser desligado da necessidade de reconhecimento, transformação e ânsia de vida. Como é que o desejo se manifesta? Comunicando. Qual é o meio utilizado nessa comunicação? É o corpo. O corpo do ser humano está no mundo, no sentido de presença activa, definindo-se também pela relação com os outros corpos.
Este processo envolve um contacto vital: “comunicar com outrem é entrar em contacto, misturar substâncias”, diz o filósofo José Gil. “Qualquer que seja a maneira como se pensa este comunicar, ele implica um contacto directo que é, ao mesmo tempo, conhecimento e afecto” (Gil, 1997: 148). O contacto com o outro pode efectivar-se através do olhar, da pele, dos odores e das secreções. Estas formas de comunicação ganham corpo nas obras através dos elementos e materiais a que a escultora recorre. Para além das oito cabeças e do cone de sal que por baixo delas se eleva, conjunto recortado por um projector de luz branca que irradia de cima até à base, duas outras figuras surgem na penumbra, pontuando o espaço fora do circulo: a de um golfinho em terracota branca e de um pássaro em cera virgem. Estes constituem-se como elementos dinâmicos referentes à água e ao ar, apontando para o recomeço, anunciando o nascimento e a transcendência que destes advirá. Assim, na obra de Virgínia Fróis as matérias eleitas, entre elas o barro, o sal, o chumbo e a luz assumem uma dimensão simbólica, fazendo alusão directa ao corpo e ao espirito, à condição perecível da existência humana, à sua possibilidade de transcendência e purificação. Neste âmbito, pode entender-se que os materiais escultóricos usados pela autora reforçam o sentido de presença e de condição sensível inerentes quer, à experiência estética, quer à relação com o outro.
Em última instância, significa que produzir uma obra de arte é também comunicar com o outro, reclamar a sua generosidade, disponibilidade e recepção. Quando se pressente que não há reciprocidade do outro lado, do outro corpo “sentimo-nos incapazes de comunicar com ele – quer dizer, de abrir o nosso interior e a nossa pele ao seu interior. O nosso espaço de limiar retrai-se, recusa-se – porque não há espaço de limiar do outro lado (…).” (Gil, 1997: 159). Deste modo, não é estranho que a escultora parta para a realização deste trabalho envolvendo outros criadores no fazer artístico desde a génese, isto é, desde o seu nascer. Por via dessa colaboração, a obra vai-se alterando e conhecendo outras formulações com a partilha, a troca de ideias e contribuição dos pares. As peças foram realizadas na oficina de cerâmica da UNESP, com alunos de estudos avançados do Instituto de Artes, nas àreas das Artes Visuais/Cerâmica, Teatro e Música. Esta partilha, que aliás não é estranha ao percurso da Virginia Fróis – recorda-se que conceptual e metodologicamente, a autora tem desenvolvido diferentes formas de colaboração com grupos específicos –, proporciona uma reflexão sobre a criação individual e em grupo.
É para o trabalho conjunto sobre a memória, o luto e as experiências sensíveis, próprias da existência humana, que remete o trabalho da artista, ao lembrar que cada indivíduo não tem existência isolada.
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